Nevoa Virtual em O King de Luciano Berio
Artigo escrito por Renato Bon em Novembro de 2009
O presente trabalho propõe estimativas de efeitos perceptuais que as técnicas composicionais utilizadas por Luciano Berio, na peça O King, podem gerar. Tais estimativas são desenvolvidas segundo a relação de sua análise com o texto “O Atual e o Virtual” de Gilles Deleuze. A peça foi composta originalmente para Flauta, Clarinete Sib, Violino, Violoncelo, Voz e Piano em 1967 e ganhou nova instrumentação (orquestral e coral) e um pequeno trecho final ao se tornar o segundo movimento de sua Sinfonia em 1968, 1969. No entanto a análise é referente à versão original para conjunto de câmara. Características muito citadas de sua composição são a intima relação entre voz e instrumentação e sua postura politizada. Podemos ver ambas em O King.
“Todo atual rodeia-se de uma névoa de imagens virtuais. Essa névoa eleva-se de circuitos coexistentes mais ou menos extensos, sobre os quais se distribuem e correm as imagens virtuais. É assim que uma partícula atual emite e absorve virtuais mais ou menos próximos, de diferentes ordens.”[1]
Podemos observar o conceito de virtualidade, ao qual Deleuze se refere, nas localizações dos ataques das notas de O King (1967). Luciano Berio (1925) estruturou a rítmica de forma que os ataques raramente sejam simultâneos, suas durações se estendem de forma assimétrica e se entrelaçam de gerando uma alta dificuldade de serem organizadas percentualmente. Uma peça tonal dos períodos barroco ou clássico terminam suas frases e períodos em cadencias harmônicas simultaneamente a finalizações rítmicas e melódicas, o que torna seus contornos bem definidos. A estrutura rítmica de O King dilui os contornos das frases tornando a névoa de imagens virtuais muito mais densa. A incerteza da constante reformulação do atual ganha uma gama muito mais extensa de probabilidades, direcionando-se ao infinito.
Observemos as relações entre emissor e receptor, os dados emitidos devem ser decodificados pelo receptor para que o código gere o significado. Existem casos em que o significado se faz juntamente a formulação de um sistema, como uma composição serial, diferentemente de uma decodificação através de significados de um sistema pré-existente, como uma composição que se utiliza do sistema tonal. Pelas palavras de Deleuze os elementos “são ditos virtuais à medida que sua emissão e absorção, sua criação e destruição acontecem num tempo menor do que o mínimo de tempo contínuo pensável, e à medida que essa brevidade os mantém, consequentimente, sob um princípio de incerteza ou de indeterminação.” As localizações dos ataques e durações desenvolvidas por Berio nesta peça direcionam-se ao mínimo de tempo pensável, podendo-se estimar que não seja possível perceber uma pulsão. A pulsação é uma “certeza” de existência de um próximo atual, é uma permanência que auxilia a percepção a metrificar a sucessão de atuais simultaneamente a expectativa. Retirar a pulsação é levar um sistema a uma constante reformulação, levando o atual a multiplicidade da virtualidade com maior freqüência em todas as suas camadas e profundidades.
Escolher a técnica serial significa preceder uma seqüência de atuais, este princípio rege consequências de ordem estrutural como também cria um vínculo de expectativa na escuta. A série de O King é formada de vinte e uma alturas, ao enarmônizarmos “Sol #” e “Lab” podemos ver que a série é formada por sete alturas (“Fa”, “Lab”, “La”, “Sib”, “Si”, “Do#”, “Re”) que se repetem três vezes.
Série de vinte uma alturas de O King:
A série pode ser dividida em três grupos que serão chamados de A, B e C. A série é exposta quatro vezes inteira, na quinta vez a parte A é tocada inteiramente e a B é tocada até a quinta nota “Re”, onde a primeira silaba do nome Luther, referente ao mártir negro Martin Luther King, é enunciada. Isto ocorre na terceira tercina de semínima do compasso setenta e seis, na primeira metade do terceiro tempo a silaba é mantida e a voz salta para “Lab”, na ultima colcheia do compasso, que é de três por quatro, a voz salta para “Reb” mudando a silaba para ther completando o nome Luther que é maximizado no compasso seguinte com o salto para o ponto culminante, a nota “Sol” com a silaba King. Esta é mantida até o início do compasso oitenta onde uma pausa de semicolcheia e uma de colcheia separam o próximo ataque, que ainda é em “Sol”, porem com a vogal “o”. Retomando o nome no compasso oitenta e três, desta vez inteiramente iniciando com Martin, dirigindo a música para uma finalização. Nestes compassos, de oitenta e três a oitenta e nove, Berio escreve os símbolos fonéticos nos instrumentos, como se pudesse transportar a articulação verbal para a instrumental.
Ponto Culminante:
Ao reconhecer a série o ouvinte direciona a percepção dos atuais a sua ordenação. Segundo Deleuze: “Todo atual rodeia-se de círculos sempre renovados de virtualidade, cada um deles emitindo um outro, e todos rodeando e reagindo sobre o atual.” – A irregularidade dos ataques modifica a relação do ouvinte com a percepção da série, a expectativa de sequência predispostas de atuais se transforma no reconhecimento de uma sonoridade semelhante em constante reformulação. A constante renovação ocorre também e simultaneamente com os outros instrumentos. A primeira relação que podemos observar é a utilização do mesmo material da série nos outros instrumentos, dispostos inicialmente em semicânone desenvolvendo uma reverberação, uma aura ressonante em torno dela. Esta aura, ao mesmo tempo que adiciona probabilidades a nevoa virtual, sustenta-se no tempo.
“As imagens virtuais são tão pouco separáveis do objeto atual quanto este daquelas. As imagens virtuais reagem portanto sobre o atual. Desse ponto de vista, elas medem, no conjunto dos círculos ou em cada círculo, um continuum, um spatium determinado em cada caso por um máximo de tempo pensável.”[2]
Ao desenvolver o semicânone Berio introduz alguns padrões nos instrumentos. Estes padrões são deslocados sobre a série conduzindo a percepção ao máximo de tempo pensável. Escolhi o padrão que julguei ser mais facilmente identificável. O padrão formado pelas notas “Do”, “Lab”, ”Sib”, “Do#” e “Re” em colcheias que é tocado pela flauta nos compasso 9, 15, 19 e 32. Deslocando sobre a série o padrão aparece sempre em um momento distinto. No compasso 9 aparece sobre a terceira quarta e quinta notas da seção B, no compasso 15 sobre a sexta e sétima notas do C, no compasso 19 sobre a décima nota de C e no compasso 32 sobre a quinta e sexta notas de C.
Padrão da flauta deslocando sobre a série da voz nos compassos 9, 15, 19 e 32:
Anteriormente ao ponto culminante Berio escreve um revezamento de símbolos fonéticos com silabas, ao invés de um texto em língua falada, para a voz. Esta configuração leva o ouvinte à expectativa da descoberta do significado do texto, expectativa que só se cumpre no ponto culminante da peça.
“A percepção atual tem sua própria lembrança como uma espécie de duplo imediato, consecutivo ou mesmo simultâneo. Com efeito, como mostrava Bergson, a lembrança não é uma imagem atual que se formaria após o objeto percebido, mas a imagem virtual que coexiste com a percepção atual do objeto. A lembrança é a imagem virtual contemporânea ao objeto atual, seu duplo, sua “imagem no espelho”. [3]
Por não escrever o texto em língua falada Berio leva a audição da sucessão de fonemas a um estado próximo a audição de uma serialização, onde as peças vão se encaixando para formar um significado intrínseco ao sistema simultaneamente a sua formação. No entanto um duplo virtual se faz por levar a memória a sugestão da decodificação da palavra implícita pelos fonemas, unindo características de uma percepção atual a sua imagem virtual. Aproximando a audição de um sistema que se forma ao ser percebido (fonemas – série), com um sistema previamente codificado (fonemas – língua falada). – “O atual e o virtual coexistem, e entram num estreito circuito que nos reconduz constantemente de um a outro” – A interpretação de palavras em uma língua falada ocorrem através do circuito entre atual e virtual, no entanto uma única palavra pode ter vários significados, o que torna seu reconhecimento ainda virtual no instante de sua atualização, esta imagem virtual absorve a atualidade. Porém após seus significados terem sido reconhecidos seus significados são cristalizados. Este momento “Não é mais uma singularização, mas uma individuação como processo, o atual e seu virtual. Não é mais uma atualização, mas uma cristalização. A pura virtualidade não tem mais que se atualizar, uma vez que é estritamente correlativa ao atual com o qual forma o menor circuito.” Com efeito, o desenvolvimento de um revezamento fonético sugerindo sonoridades de uma língua falada rompe com a cristalização da interpretação, promovendo tanto a expectativa de sua decodificação quanto uma elasticidade no circuito que uni virtual e atual, hora se aproximam em função da decodificação, hora se distanciam em função do não significado. A elasticidade pode ser encontrada também em função do tempo, podemos observá-la através da relação dos revezamentos de fonemas e silabas sobre a estrutura da série.
Relação do revezamento de fonemas e silabas sobre a estrutura da série:
A elasticidade temporal é mais evidenciada quando observamos a freqüência das mudanças de formula de compasso. Esta técnica deriva do procedimento celular de desenvolvimento gerada por Stravinsky no balé A Sagração da Primavera,no entanto se difere no tratamento da sobreposições de elementos. Stravinsky entrelaça as estruturas através da sobreposição de blocos, com ataques e durações com contorno definidos, sendo relacionado ao cubismo, Berio distancia e aproxima as estruturas temporais sem contorno e sem ataques simultâneos.
Abaixo podemos ver um tabela com os números dos compassos nas células superiores e as formulas de compasso nas inferiores. Esta constante reformulação de formulas de compasso leva a cada repetição da estrutura, construída em torno da série, ter uma quantidade te tempos distintos. Tomemos como coeficiente a colcheia, que é a menor unidade de tempo encontrada. Veremos que a primeira exposição da série terá 27, 23, 59 colcheias para A, B e C respectivamente. A segunda 25, 28, 46, a terceira 26, 20, 38 a quarta 23, 21, 46 e o início da quinta 12, 13. Tais relações estão mais detalhadas no gráfico abaixo da tabela.
Tabela de formulas de compassos:
1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10 | 11 | 12 | 13 | 14 | 15 | 16 | 17 | 18 | 19 | 20 |
44 | 24 | 38 | 34 | 34 | 34 | 24 | 38 | 34 | 24 | 24 | 34 | 44 | 34 | 44 | 34 | 24 | 44 | 44 | 24 |
21 | 22 | 23 | 24 | 25 | 26 | 27 | 28 | 29 | 30 | 31 | 32 | 33 | 34 | 35 | 36 | 37 | 38 | 39 | 40 |
38 | 34 | 34 | 34 | 44 | 34 | 24 | 24 | 34 | 44 | 34 | 44 | 34 | 24 | 34 | 34 | 34 | 34 | 34 | 44 |
41 | 42 | 43 | 44 | 45 | 46 | 47 | 48 | 49 | 50 | 51 | 52 | 53 | 54 | 55 | 56 | 57 | 58 | 59 | 60 |
34 | 24 | 24 | 34 | 44 | 34 | 44 | 34 | 24 | 34 | 34 | 34 | 34 | 34 | 44 | 34 | 24 | 24 | 24 | 34 |
61 | 62 | 63 | 64 | 65 | 66 | 67 | 68 | 69 | 70 | 71 | 72 | 73 | 74 | 75 | 76 | 77 | 78 | 79 | 80 |
34 | 34 | 34 | 24 | 34 | 34 | 34 | 34 | 34 | 34 | 34 | 24 | 24 | 24 | 24 | 34 | 34 | 34 | 34 | 34 |
81 | 82 | 83 | 84 | 85 | 86 | 87 | 88 | 89 | 90 | 91 |
34 | 34 | 34 | 24 | 24 | 24 | 34 | 34 | 34 | 34 | 34 |
O gráfico abaixo mostra os grupos da série A, B e C em laranja, amarelo e verde respectivamente, os números de compassos na régua superior e a quantidade de colcheias abaixo de cada grupo:
Concluindo, todos esses fatores levam a percepção a distanciar e aproximar as atualizações de uma nevoa virtual intensificada pela irregularidade dos ataques, uma aura ressonante em torno da série, deslocamentos de padrões sobre a série, revezamento de silabas e fonemas ao invés de uma letra em língua falada e uma elasticidade temporal criada através de constantes mudanças de formula de compassos.
[1] Deleuze, Gilles. O Atual e o Virtual. Editora 34, 1996 – pag. 49
[2] Deleuze, Gilles. O Atual e o Virtual. Editora 34, 1996 – pag. 50
[3] Deleuze, Gilles. O Atual e o Virtual. Editora 34, 1996 – pag. 53
Bibliografia:
– Deleuze, Gilles. O Atual e o Virtual. Editora 34, 1996
-ZUBEN, Paulo. Ouvir o Som. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005
-GRIFFTHS, Paul. A música Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, Cromosete Editora, 1998 (1ª Ed. 1986)
Partitura:
-BERIO, Luciano. O King. Londres: Universal Edition Nr. 13781 Mi, 1970